Projectificação e Gestão do Conhecimento

Você já ouviu falar em projectificação? Talvez não, mas temos certeza de que você já sentiu os efeitos desse fenômeno – provavelmente, no seu local de trabalho. Embora o termo tenha sido criado em 1995 por um pesquisador chamado Midler[1], trata-se de um fenômeno que já vinha acontecendo há algum tempo, e que só tem aumentado sua expressividade. Ele está relacionado à criação de estruturas organizacionais temporárias cujo objetivo é executar um conjunto de tarefas pré-definidas, ao longo de um período de tempo bem delimitado, através de um esforço em equipe, e gerar um certo resultado – ou seja, os projetos.

Dentro das organizações, o fenômeno da ‘projectificação’ teve origem principalmente nos processos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), que foram os primeiros a utilizar uma lógica de projetos para organizar o trabalho. Mas tem se estendido para além dessa área – e para além de indústrias que naturalmente trabalham por projeto, como a construção civil – se expandindo para todo tipo de indústrias, inclusive a de serviços, e para todas as áreas das organizações – inclusive, não apenas empresas privadas, mas também instituições governamentais, tem passado a adotar essa forma de trabalho. Existem autores explorando até a perspectiva de que estamos vivendo em uma sociedade ‘projectificada’, organizando as nossas vidas pessoais a partir de uma lógica similar à dos projetos (mas essa é uma outra história...). Alguns pesquisadores chegam a estimar que os projetos já compõem parcelas significativas do trabalho de países inteiros – a Alemanha, por exemplo, já contava com 35% das horas de trabalho gastas em projetos em 2018, e esse número deve chegar a 41% em 2020[2].

Mas por que isso está acontecendo?

Porque os projetos são considerados uma forma prática e eficiente para introduzir processos, práticas e políticas inovadoras. Sua crescente adoção acontece porque eles são propícios para trazer flexibilidade, agilidade e efetividade nos custos, ao mesmo tempo em que são capazes de introduzir inovações significativas – tendo um impacto direto na competitividade das organizações no médio e no longo prazo.

Como resultado dessa tendência, as práticas de gestão de projetos tem sido cada vez mais incorporadas dentro das organizações como uma forma de organizar tanto as atividades de desenvolvimento de novas práticas, quanto as funções mais tradicionais dos negócios. As implicações são as mais diversas, e incluem mudanças nas hierarquias (estrutura departamental versus estrutura de projetos), nas funções existentes dentro das empresas, na definição e distribuição de tarefas, na gestão de carreiras, e nos relacionamentos com fornecedores. Mais que tudo, no entanto, a coexistência de estruturas permanentes (onde estão as atividades de rotina) com as organizações temporárias (onde estão as atividades de projeto) traz muitos desafios para o ambiente e para as relações de trabalho. Se a crescente presença dos projetos não for bem gerenciada, vários problemas surgem dentro da empresa, resultando inclusive em um ambiente de trabalho tóxico. Dentre os principais, podemos citar: 1) o excesso de horas de trabalho planejadas para os colaboradores, gerando conflitos entre a execução das atividade de rotina e de projeto; 2) diminuição da experiência de aprendizado devido à carga excessiva; 3) aumento da rotatividade de pessoas; 4) perda do conhecimento gerado pelos projetos.

A perda do conhecimento gerado pelos projetos é um efeito que gostaríamos de explorar com mais profundidade neste texto por ter uma influência direta no nosso trabalho. Ele é consistentemente observado quando estão presentes as lógicas de trabalho ‘projectificadas’ nas organizações, com efeitos enormes sobre sua base de conhecimentos – principalmente os tácitos. E perda de conhecimento pode ter efeitos devastadores sobre a produtividade e sobre a competividade das empresas no médio/longo prazo.

Nonaka e Takeushi[3], muito conhecidos pelos seus trabalhos em gestão do conhecimento, já exploravam o fenômeno da coexistência de diferentes lógicas de trabalho nas organizações – embora o termo ‘projectificação’ não existisse, e mesmo a palavra projetos não fosse necessariamente empregada por eles em todos os casos – se preocupando em comparar as dinâmicas de organizações burocráticas com as dinâmicas de organizações ‘força tarefa’ [no original, task force] e seus impactos sobre a base de conhecimentos de uma empresa. Eles exploraram os mecanismos através dos quais o conhecimento transita entre diferentes ‘camadas’ organizacionais, e como preservá-lo mesmo em ambientes onde os papéis são temporários e fluidos.

É muito comum que a transmissão de conhecimento ocorra pessoa a pessoa, e que seja prejudicada quando as pessoas trocam de função sem que o conhecimento gerado durante um projeto seja devidamente registrado para que seja reaproveitado. Definir mecanismos para gerenciar e armazenar os conhecimentos gerados pela empresa em estruturas projectificadas é um desafio extremamente relevante, criando a necessidade de que as empresas se estruturem e se preparem para gerir essas novas organizações, que serão cada vez mais compostas por uma mescla entre atividades de rotina e atividades de projeto.

Visando endereçar este problema, Nonaka e Takeushi[3] descrevem as ‘hypertext’ organizations, que são compostas por três camadas coexistentes: (i) negócio [business-system layer], análoga às formas tradicionais de organização do trabalho; (ii) a equipe de projeto [project team layer]; (iii) a base de conhecimento [knowledge base layer]. Uma característica chave da organização tipo hypertext* é a habilidade de seus membros para transitar dentre as três camadas existentes, acomodando os requerimentos cambiáveis entre diferentes contextos, tanto dentro quanto fora da organização – habilidade esta que lhes oferece flexibilidade.

Hypertext Organization

Figura 1. As três camadas de uma hypertext organization. Adaptado de Nonaka & Takeushi, 1995

A partir deste entendimento, o processo de criação do conhecimento organizacional passa a ser apresentado como um ciclo dinâmico, onde o conhecimento transita facilmente através destas três camadas. Os membros de uma equipe de projetos, que ficam na camada superior da Figura 1, foram selecionados a partir das diversas funções e departamentos existentes na camada do negócio, e então se engajam em atividades de criação de conhecimento. Uma vez que a equipe complete seu projeto, eles devem passar pela camada da base de conhecimento e registrar o conhecimento criado e/ou adquirido durante esse projeto. Esse registro deve incluir tanto seus sucessos quanto suas falhas, que serão documentados e analisados. Apenas após a categorização e contextualização do novo conhecimento adquirido, os membros da equipe poderão retornar à camada dos negócios e se envolver novamente em operações de rotina – até que sejam novamente recrutados para algum projeto. É essa habilidade para transitar rapidamente e com flexibilidade entre essas camadas, de forma a criar um ciclo de conhecimento dinâmico que, em última instância, irá determinar a capacidade organizacional para criar conhecimento.

Ao longo de nossa experiência como consultores, nos deparamos com todos os efeitos trazidos pelas lógicas projectificadas, e eles costumam impactar diretamente os resultados dos projetos que implementamos. A ‘super alocação’ das pessoas, além de gerar conflitos entre a execução das tarefas de rotina e de projetos, é um fator de atraso muito comum – e que poderia ter sido previsto e mitigado. A experiência de participar de um projeto acaba se tornando algo bastante negativo, ao invés de ser uma jornada de evolução e transformação. E o conhecimento muitas vezes se perde rapidamente – seja porque as pessoas que o detinham resolvem sair da organização, seja porque elas são completamente reabsorvidas por suas rotinas – gerando frustração e uma sensação de desperdício de tempo.

Por isso, a tecemos oferece uma solução que chamamos de ‘Núcleo da gestão da transformação’ (NGT). Trata-se de uma estrutura organizacional permanente que tem a responsabilidade de gerenciar as estruturas temporárias, mas não apenas nos aspectos relacionados ao triângulo de ferro dos projetos – custo, prazo e escopo. Essa estrutura incorpora também uma preocupação com o processo de transformação pelo qual a organização irá passar através dos projetos.

O NGT é inspirado no modelo da organização hypertext enquanto gestão de conhecimento. Mas inclui também o uso de técnicas que permitam à empresa gerenciar o processo de transformação, otimizando os recursos investidos ao garantir ritmo de execução, disciplina de gestão e análise sistêmica da consistência técnica entre projetos – evitando retrabalhos futuros. Também aumenta a participação das pessoas e amplia a adoção efetiva das mudanças propostas pelos projetos implementados ao cuidar das dimensões humanas envolvidas nesse processo.

Projectificação

Figura 2. Núcleo de gestão da transformação. Retirado de http://www.tecemos.com/desen-NGT.html

O NGT possui 4 pilares que irão endereçar os principais desafios gerados pela projectificação. São eles:

  • PMO centralizado: a centralização da gestão de projetos permite analisar e distribuir de forma racional a carga de trabalho entre os colaboradores, evitando sobrecargas. Além disso, através de um controle efetivo do andamento do projeto – em termos de prazos, recursos e integração com as demais iniciativas – são definidos mecanismos eficientes para manter o conhecimento gerado (com mecanismos de gestão do conhecimento implementados), garantir a produtividade dos projetos, e endereçar os desafios que surjam a partir de uma estratégia centralizada.
  • Gestão de mudança: de acordo com Porter, “A cultura come a estratégia no café da manhã”. Essa frase resume a importância de engajar as pessoas no processo de transição para um novo modelo. Esse engajamento também aumenta o sentimento de contribuição para a construção dos objetivos organizacionais, diminuindo os problemas de rotatividade de pessoas.
  • Integração técnica: quando muitos projetos são implementados ao mesmo tempo, e de forma descoordenada, existe uma alta probabilidade de que algumas precedências técnicas não sejam respeitadas, e até de que projetos conflitantes sejam executados – desperdiçando recursos, tempo, e aumentando o sentimento de insatisfação das pessoas. Neste sentido, o NGT garante que os projetos sejam mutuamente complementares e implementem o modelo de negócio definido para a empresa como um todo - não apenas melhorias pontuais nos departamentos.
  • Gestão dos resultados: os projetos devem gerar valor, então precisam ser monitorados para mensurar se suas ações táticas estão gerando o resultado planejado na árvore de valor da empresa.
  • Os principais benefícios colhidos com a implementação de um NGT são o estabelecimento e controle do ritmo da transformação, o alinhamento das pessoas em torno de um objetivo comum, correção de rota sempre que necessário, associação de ações táticas com o resultado gerado por elas, o estabelecimento de mecanismos para a gestão do conhecimento adquirido (ou gerado), e a eliminação das barreiras à mudança.

    Se esse conteúdo fez sentido pra você, e você quiser saber mais, visite a página dedicada ao NGT no nosso site aqui ou entre em contato com a gente!

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    * Atenção! A organização hypertext não é equivalente às estruturas matriciais. Na hypertext, as pessoas pertencem ou reportam apenas a uma estrutura organizacional em um determinado período, variando conforme o papel que estão desempenhando naquele momento. Já nas estruturas matriciais, elas pertencem ou reportam a duas estruturas ao mesmo tempo.

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    Bibliografia principal

    [1] Midler, C. (1995). Projectification of the firm: the Renault case. Scandinavian Journal of Management, 11(4), 363–375.

    [2] Schoper, Y. G., Wald, A., Ingason, H. T., & Fridgeirsson, T. V. (2018). Projectification in Western economies: A comparative study of Germany, Norway and Iceland. International Journal of Project Management, 36(1), 71–82. https://doi.org/10.1016/j.ijproman.2017.07.008

    [3] NONAKA, Ikujiro; TAKEUCHI, Hirotaka. The knowledge-creating company: How Japanese companies create the dynamics of innovation. Oxford university press, 1995.